“Jaws” - Há mar e mar, há ir e não voltar

Sempre achei curioso que os dois filmes creditados como sendo os pais do blockbuster moderno tenham nascido de obras literárias de género inferiores: “The Godfather”, de Mario Puzo, é um simples romance criminal, espalhafatoso e operático em todos os maus sentidos; “Jaws” foi escrito por Peter Benchley como um simples conto de terror envolvendo tubarões, terras de veraneio e triângulos amorosos desnecessários. Revela bastante do poder do Cinema que ambos tenham originado obras ainda hoje consideradas primas, não só nos seus géneros, mas marcando uma era da História do Cinema norte-americano. “Jaws” deixou escola, e de tal forma que na década de 80, onde o high-concept movie era em si um género, não era raro haver filmes definidos como “Jaws on a…”. Entre citações e a banda sonora de referência de John Williams, que começa com este filme a tornar-se no compositor das nossas vidas, “Jaws” mantém-se como um filme universal. Entre alguns realizadores que cresceram inspirados pela seminal obra de Steven Spielberg, contam-se Bryan Singer, que baptizou a sua companhia de produção com uma das falas do filme, e David Fincher, que o conta como dos seus filmes preferidos e confessou nunca mais ter conseguido entrar no mar desde que presenciou o horrífico poder de “Jaws” enquanto criança.

No entanto, o filme teve todos os ingredientes para o desastre: um realizador apenas tinha uma longa-metragem feita; um orçamento que rapidamente ultrapassou o montante inicial; um calendário de filmagem que durou mais três meses do que o previsto; o facto de ser filmado em grande maioria dentro de água; e a maior estrela da companhia, um tubarão mecânico que supostamente faria as bocas do espectadores abrir de espanto, estava em constantes falhas mecânicas. Spielberg não conseguiu as suas primeiras escolhas no casting das principais personagens e a tensão no set estava tão em alta que no último dia de filmagens, o realizador vestiu o seu melhor fato de gala para causar nos seus trabalhadores alguma hesitação caso quisessem atira-lo para a água. Gravada a última cena, Spielberg saltou para um barco e enquanto este se afastava, disse “Não me apanham aqui outra vez”.

“Jaws” era, ainda assim, um guião à sua medida: com a sua intriga em que homens comuns se vêem perseguidos por uma força descomunal e aparentemente sem motivo, lembrava o telefilme “Duel” que o tornara famoso. Neste, em vez de um tubarão, tínhamos um camião, cujo condutor nunca conhecemos e que acossa um normal indivíduo. O final de ambos os filmes não é muito diferente, e o trabalho sonoro aproxima-os, na medida em que partilham certos efeitos de som, incluindo um do filme “The creature of black lagoon”, no momento em que ambos são destruídos.

O grande trunfo de Spielberg foi transformar em forças precisamente as fraquezas que lhe colocaram nas mãos. Para começar, a ausência do tubarão levou-o a usar da subtileza que faz de “Jaws” um potente filme de terror: raramente vemos a criatura na primeira hora, e somos confrontados com os efeitos físicos da sua presença, da sua crueldade. As referências visuais que a simbolizam assustam mais do que a sua potencial imagem. Quais cobaias de uma experiência pavloviana, somos condicionados como espectadores a sentirmos as mandíbulas do tubarão quando os acordes da banda sonora de John Williams entra em cena. Se escutamos o “dam-dam-dam-dam” da tuba, trememos de antecipação: ele anda aí. Um dos maiores sustos do filme, o que origina a imortal “You’re gonna need a bigger boat”, acontece porque não temos aviso perante a aparição da besta. Spielberg, por estranho que pareça, pensava inicialmente que este tema era uma piada de Williams para gozar consigo, e perguntou-lhe qual era, afinal, a verdadeira composição que este criara para o filme…

A outra fraqueza que se transforma num trunfo é o elenco de terceiras e quartas escolhas que hoje nem conseguimos dissociar das personagens. O chefe Brody foi proposto a Robert Duvall, que o recusou, e desejado por Charlton Heston, dispensado por Spielberg por ser maior do que as personagens. Surgiu Roy Scheider, que coloca decência e a força do homem comum em cena. O biólogo marinho Hopper, onde Richard Dreyfuss revelou todos os tiques que o tornam num dos actores mais reconhecíveis da década de 70, esteve para ser de Jeff Bridges e Jon Voight, que recusaram. Dreyfuss, aliás, também afastou inicialmente o cálice, mas mais tarde voltou atrás para interpretar o neurótico homem de ciência com complexo de inferioridade. Quint, rude e temerário, esteve para ser de Lee Marvin, que negou por gostar só de pescar na vida real. Robert Shaw transformou o personagem num estereótipo de lobo do mar, mas encontrou na sua essência também a dor que é exemplificada pelo momento mais electrificante do filme, que envolve apenas a sua cara e o silêncio quebrado pela cadência das palavras: o famoso discurso do USS Indianapolis, uma história que não corresponde totalmente à realidade (algo que tem pouco lugar no filme, a começar no comportamento dos tubarões), mas que se tornou num daqueles grandes momentos de cinema simples, e uma das cenas de charneira da filmografia Spielberguiana. A autoria da cena é discutida, embora se costume atribuir a escrita a Howard Sackler e John Milius, e alguns cortes feitos pelo próprio Shaw. Quint revela-se um xamã, capaz de enfeitiçar, de compreender os tubarões e a sua alma, porque viveu uma experiência limite que os envolve. É esse momento que faz da meia hora final uma catarse constante de tensão.

O grande testamento do poder do filme é a quantidade que teorias interpretativas que gerou, se tivermos em conta que a história é bastante directa e linear. Desde reacção ao escândalo de Watergate até à teoria dos três poderes, passando pela original interpretação de que o filme,por ser protagonizado por três homens, retrata o medo masculino de uma vagina dentada, há de tudo para os cinféfilos. Mas o fã mais surpreendente não só do filme como de Spielberg era Ingmar Bergman, que chegou a visitar até a oficina onde estavam a ser feitos os tubarões. Bergman confessaria, numa entrevista de 2002, que apenas quatro realizadores norte- americanos lhe chamavam a atenção: Scorsese, Coppola, Soderbergh e Spielberg. O génio do cinema europeu e o wunderkind do cinema norte-americano unidos por um tubarão e pela exploração dos medos e sentimentos primários do Homem. Cinema é Cinema, e ninguém o sabe melhor do que um realizador. “Jaws” é a proeza de ser Filme e Cinema em simultâneo. Afinal, a marca mais vincada do cinema de Spielberg.

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