“Beau travail”: I want to break free
Rever um filme muitos anos depois da primeira vez pode ser quase como uma estreia. Algures no início do século, apanhei "Beau travail", de Claire Denis, num daqueles bons ciclos que a RTP 2 organizava semanalmente. Lembro-me de ter registado pouco; mas há uns dias, por acaso, cruzei-me com um artigo sobre a obra e fiquei curioso de experimentá-lo novamente. Em boa hora. Apercebi-me em primeiro do quanto a minha capacidade para entender, de facto, um filme cresceu com a leitura, com a experiência de ver mais e diferentes exemplos; e de como "Beau travail" tem menos a ver com narrativa, mas sim com o tecido da memória e a sensibilidade da solidão, da maneira como ambas captam emoções, estados de alma, momentos, os dias que passam. Baseado num livro acabado de Herman Melville, o filme passa-se numa recruta da Legião Estrangeira. Galloup, algum tempo depois, recorda-a. O seu corpo está em Marselha, nos espaços da rotina; a sua mente, e o que passa por coração, estão claramente em Djibouti com a instituição militar, com os seus homens - dois principalmente - com os cheiros e flutuações da paisagem africana. Um paisagem física, humana.
Os episódios do regimento são apanhados fugazes, quase rotineiros, de acontecimento que passa. Não há uma ligação aparente a não ser o quotidiano do soldado. Os seus movimentos, os seus treinos, a camaradagem entre desconhecidos que se devem unir. Denis capta estas memórias com a sensibilidade poética de versos que se exprimem em formas, em imagens, em texturas - a direcção de fotografia, aliás, é excelente nesse aspecto. Os soldados saem ocasionalmente à noite e tentam sentir algo, mas só tédio. Há aspectos existencialistas no filme a lembrar Camus, mas as referêncas de Denis são mais clássicas e "Beau travail" é até baseado numa obra inacabada de Herman Melville, o autor de Moby Dick; e como Ahab, também Galloup vive obcecado com algo, com um incidente que levou a que fosse expulso da Legião, a sua casa, o seu verdadeiro amor. À medida que o filme prossegue, entendemos não tanto o incidente, mas o que há em Galloup que o possibilita. A sua incapacidade de comunicar, de se exprimir. O ciúme de quem tem essa capacidade e de quem brilha entre os homens. De como Galloup, como muitos homens sem objectivos na vida, abraça uma causa e com ela vai ao fundo, faz mundo. De como tudo o mais é secundário, aquilo que verdadeiramente é Galloup nunca o revela até ao momento final. Há claro subtexto colonial em "Beau travail", de como uma França sem alma e sem brilho procura uma ilusão de poder no exercício da Legião, de como procura o genuíno na simplicidade dos africanos; e outro subentendido pedaço de languidez homo-erótica, particularmente momentos de movimento lírico ao som de Benjamin Britten - numa banda sonora bastante ecléctica - nos dias que nascem, nos braços que se estendem, nos músculos que retesam e brilham na luz, no olhar de quem está longe de tudo o mais e perto dos camaradas. Todos estes homens fogem a algo quando entram na Legião e parecem continuar em fuga uma vez lá dentro. O dever é o que aparentemente os une, mas é estranho como nenhum deles parecem ver-se a si mesmo como recompensa suficiente para o sacrifício.
Parecem não existir a não ser num camuflado no dia a dia do exército. É isso que torna o final de "Beau travail" um dos melhores que já vi, um triunfo e uma libertação, uma oportunidade de recuperar a palavra Corona em temos de pandemia. Galloup nunca saiu verdadeiramente de África, como acontece com muitos veteranos; mas nos minutos finais do filme, pode finalmente ser quem se recusou, pode estar em si, no presente, pode deixar o passado de maneira agridoce. Seguir o seu próprio ritmo em vez do que a marcha das botas lhe impôs e levou a impôr a outros. Claire Denis percebe muito bem uma certa masculinidade vazia. Não tóxica, mas ausente, baseada em estereótipos reais. De como homens que são mais lobos do que homens e se recusam e deixar esse estado. Procurando o humor, mas também a beleza desse estado bruto do granito carne.