“Chungking express”: voo sem escala

Houve uma altura nos anos 90 em que tudo o que era bom no Cinema parecia vir de Hong-Kong. Particularmente no cinema de acção, nomes como John Woo, Jackie Chan, Johnny To ou Tsui Hark transformaram o território, que viria a transitar de mãos inglesas para chinesas nesta década, numa espécie de pequena globalização cinéfila no cinema de acção. No meio destes nomes, reis do tiro e da testosterona, pintores de uma Hong-Kong de crime e violência, surgiu uma anomalia, um desvio. Um realizador que se interessava mais pela pancadaria que pulsa dentro dos corações dos românticos inveterados. Wong-Kar-Wai surge no final da década de 80 com "As tears go by" e decidiu tirar umas notas de Godard e do melodrama technicolor dos EUA para seguir numa série de grandes filmes, todos uns atrás dos outros, até à apoteose de "In the mood for love", um dos grandes filmes das últimas décadas.

É com "Chungking express" que começa essa viagem, vivendo Hong-Kong como uma bóia de terra onde todos são obrigados a viver apertados e constrangidos, forçando a intimidade, o contacto constante; e quando duas substâncias se tocam, habitualmente há reacção. Wai conta duas dessas reacções, histórias que se desenrolam em ruas apertadas, casas baixas e empoleiradas, becos de neon, bares rebeldes, lojas e restaurantes em frenesim e caos. Na primeira história, um polícia de coração partido dá a si 30 dias para esquecer alguém e no entretanto, força-se a apaixonar por uma estranha de peruca e óculos escuros na noite; na segunda, um polícia de coração partido é alvo da predilecção da prima asiática da Amélie de Jeunet. O realizador conta cada uma à vez, mas também as mistura; quando esperamos o desenlace da primeira, a segunda entra sem pedir licença, invadindo a intimidade. Entre a identidade dos uniformes e aquela que cada um dos personagens traz dentro de si, estão os mistérios de um par de narrativas mais interessado em mexer-se do que propriamente revelar-se. Estas quatro pessoas sentem-se sós numa cidade onde a densidade da população e do ar convidam a olhar para o vazio e sonhar com a Califórnia soalheira; mas a beleza e a leveza do amor e da atracção nunca abandona o filme.

É um filme em que se está, em tempos diferentes mas sempre no mesmo espaço. As personagens convivem e afastam-se e esperam abandonar o que consideram seu, mas afinal não é. Mas é Wai o maior sedutor, ajudado pela excelente direcção de fotografia de Andrew Lau e Christopher Doyle - que viria a filmar os sues filmes seguintes - que capta o burburinho de Hong-Kong com uma steadycam frenética, rápida, mas que nunca se deixa perder realmente. "Chungking express" tem algumas das mais emblemática simagens do cinema asiático deste período, alguns dos seus actores mais fotogénicos (Tony Leung é uma entidade divina e Faye Wong uma fada de cabelo curto que por vezes invade o território dos goblins travessos) e um realizador que decide descobrir outras linguagens para desvendar este território. Wai fala sobre a solidão, mas com charme, com um sorriso na cara, com um comentário meio mordaz sobre a global Hong-Kong, sobre a distância tremenda que na altura separava a ilha da plataforma continental chinesa. É uma sedução livre e solta, um convite a olhar e embevecer, a cantar até aos últimos dias a mesma canção uma e outra vez. E voltar ao princípio. E seguir para o próximo cruzamento de vidas aleatórias da grande cidade.   

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