“Holy motors”: ultrapassagens a 120 à hora
Há varios tipos de espectadores de Cinema e os piores são os cinéfilos. Como eu. Aos cinéfilos não basta apenas gostar de um filme. Existe a vontade de questionar e interrogar, mergulhar tudo em análises, retirar das imagens ais do que fotogramas em correria. Os cinéfilos fazem perguntas, por vezes perguntas que nem sequer têm interesse para o espectador vulgar, que faz da saúde mental a sua grande prioridade. A principal dessas perguntas é um clássico: O que é o Cinema, afinal? Na resposta, várias hipóteses. Um filme pode ter várias caretas e faces, vários passos e ritmos. Para quem vê, um filme serve propósitos vários e cada um procura nele a satisfação e o refúgio que se pede e que deseja. O que torna inútil este critério; e a conversa entre cinéfilos passa logo para uma segunda característica: o que torna o Cinema numa arte diferente das outras? Porque afina, esta que é Sétima acaba por congregar todas as outras. A narrativa implícita da Literatura. A plasticidade da Escultura e da Pintura. A beleza do gesto da Dança. A emoção sonora da Música. O realismo do mundo da Fotografia. Tudo isso podemos encontrar numa fita; mas o que é que fita desfita que nenhuma outra Arte consegue? E o problema jaz aqui. Eu tenho a minha própria opinião: o Cinema é talvez o único meio capaz de projectar o que é de facto o mundo interior de cada um em directo. As restantes artes podem captar fragmentos, momentos, flutuações, mas é apenas num filme que conseguimos reconhecer a realidade do que não se diz e do que vivemos sem explicar. Como qualquer outro, rio e vibro com filmes de grande público, mas é apenas nas experiências de sobressalto que me encontro com o que sou e com o que sinto. Daí ter enormíssimo respeito por quem realizada filmes estranhos e ser exigente com estes. De não me contentar com o vazio do virtuosismo técnico de um Gaspar Noé ou a pretensiodiade bacoca de quem não sabe encantar de um Ari Aster. Apesar do que dizem, fazer cinema deste género não é fácil. É por isso que só há um David Lynch. É por isso que Terrence Malick, por exemplo, não acerta sempre. Um filme não é uma instalação artística. Um filme procura inquirir, quando feito na sua plenitude, e transportar. Não pretende, acho, lançar imagens desconexas ou simplesmente estéticas. Há algo nos melhores filmes que bate como um martelo nas cavernas do Ser. E que nos faz escrever coisas que passam perfeitamente por pretensiosismo.
O que nos traz a "Holy Motors". Porque o que torna este filme extraordinário é precisamente instalar-se nesse habitat raro que é o do Cinema que estica as convenções do que é um filme. A história é uma não história, uma sequência de vinhetas onde um indivíduo, Mr. Oscar, passa um dia à volta de Paris desempenhando vários papéis. Para quem? Não sabemos. Com quem objectivo? É-nos retirado. Quem é Mr. Oscar? Estamos sempre à espera de saber e tal é-nos roubado. Mr. Oscar é cada papel que assume: uma velha pedindo na ponte; um homem que chama a sia toda a podridão do mundo num cemitério; um velho moribundo no último estertor da morte; e por aí fora de fingimento em fingimento até ao final que não o é. Apenas dentro de uma limusina, na conversa com a sua motorista, podemos ter algumas certezas sobre a realidade deste homem, mas mesmo assim com a ambiguidade do desconhecido. "Holy Motors" é o tipo de filme perfeito para os críticos de cinema analisarem, pois tem referências cinéfilas que não mais acabam: "Yeux sans visage", "Modern times", Godzilla" e até a própria obra do seu realizador, Leos Carax (que aparece logo no início do filme, como que convindando para um mundo que não é nosso, nem seu. É tentador encará-lo como um exercício que faz aquela questão inicial: o que é o Cinema? Para que serve? É este Mr. Oscar o artista que se desdobra em múltiplos para nosso gáudio? Seremos nós os portadores da câmara que desapaixonada capta todas as suas vinhetas? Pelos interlúdios que usam amostras dos primeiros filmes da História, tudo o indica- Mas o jogo é outro: "Holy Motors" é sobre o que é de facto a vida. Sobre a desonectividade entre cada um e a realidade. Decomo o virtual toma conta do mundo e de como nos desligamos cada vez mais da nossa identidade, das emoções, de como precisamos de viver por interpostos alter-egos e pessoas; e pela sua experiência que o surrealismo e o dadaísmo do Cinema, do choque do incompreensível, de como nos obriga a confrontar o facto de que não existe sentido para a Vida e como tal, não tem que existir um sentido intrínseco para o Cinema. O filme é assim revolucionário, mas familiar a quem segue a tradição existencialista do Cinema Francês.
Agora, tal implica que "Holy Motors" é aborrecido? Não. De todo. É uma viagem alucinante, profundamente divertida em certos pontos e emocionalmente melancólica, dorida noutros. A referida cena no cemitério é um ponto alto de humor absurdo, mas totalmente intencional e cortante na análise que faz do poder da podridão à solta na esfera pública, com um personagem chamado Monsieur Merde que fica na retina . e tinha razíes anteriores na obra de Carax; no entanto, em certos pontos, o filme veste as roupagens de duas comeventes cenas de despedida de maneira diferente e numa outra, um momento de terror paternal que não parece conhecer tabus. No meio de tudo isto, um actor: Denis Lavant, naquela que é provavelmente uma das grandes performances da Sétima Arte deste século: Dennis Lavant é uma espécie de Peter Sellers de altas ambições artísticas, um actor cuja palavra camaleónico não consegue sequer descrever correctamente. Lavant possui uma fisicalidade, e uma face, dispostas à transformação radical, moldáveis, como plasticina que se adapata às nossas expectativas. A maneira como consegue ancorar o absuro de "Holy motors" e das suas múltiplas vinhetas num realismo que não se questiona, nem mesmo quando o filme entra a toda a velocidade pelas planícies da bizarria, só está ao alcande de alguém que entende o que é Arte num ecrã. Lavant tem outras grande performances na carreira (quem não viu "Beau travail", de Claire Denis, está a perder), mas esta será provavelmente a sua obra maior. Noutros filmes, ganharia prémios, mas infelizmente, e apesar de se maquilhar também, não se veste de palhaço assassino e como tal... poucos se lembrarão dele. Carax, que realizou "Holy motors" depois de uma pausa de 13 anos após o fracasso críticos de "Pola X", arrisca oferecer uma prenda envenenada. Mas nós tomamo-la e morremos com gosto no seu labirinto e nas suas perguntas. Tecnicamente, é um filme impecável e o ritmo de Carax é apropriado, nunca entediante, o melhor tipo de bizarro: o que cativa e prende, o que faz embarcar na viagem e só querer sair no destino. Carax entende perfeitamente o seu propósito e como traduzi-lo, o poder das suas imagens e propostas, tem o sentido de humor suficiente para sair do filme e usar acordeons, de usar caras conhecidas em situações descabidas de se sentir confortável com a a sua diferença.
A certo ponto, Mr. Oscar fala sobre a beleza do gesto. Sobre o conforto do peso das câmaras que o filmavam quando era novo. De como hoje tudo é reduzido até quase não existir. Estes "Holy motors" são sobre o que é sagrado, o que dá sentido; e sobre a mecânica desses motores que dão ímpeto e ânimo à vida, de como desligar dos mesmos é estar um passinho mais próximo de sair da via da vida e entrar numa outra que não sendo morte, nos põe mais próxima dela. Interessa mesmo entender o performer? Ou sequer o que um filme nos oferece quando retiramos tanto ainda que não o entendamos na sua totalidade? É a compreensão mais importante do que a comoção, a perturbação, o abalo? Se calhar não. Se calhar um troll humano a comer flores num cemitério não tem propósito. É só mesmo isso. Se calhar a realidade está no que se sente e no que se leva. Se calhar o sagrado é isso: um mar que agita dentro de nós nas questões que colocamos, de como tentamos chegar aos outros na comunicação das ideias e das emoções para explicar o que vimos, para tentarmos fazer sentido do que não tem. Para nos encontrarmos com ele na beleza do gesto. Que neste caso é escrever para vocês. Amen.