“In the mood for love”: estranhos na noite
Existe uma lista de para aí 15 filmes que tenho mesmo vergonha de não ter visto, mesmo quando dou a entender que sim, que vi. O "In the mood for love", de Wong Kar-Wai, era dos que mais me afectava, porque na verdade sei da sua existência desde o ano de estreia, 2000. Vi o trailer no cinema, quando assisti ao "Crouching tiger, hidden dragon" na velhinha sala 2 do último andar dos Cinemas Avenida, sozinho numa floresta de cadeiras vazias, o espaço todo só para mim, as lutas desenrolando-se apenas para meu gaudio. Aquele trailer, com uma versão da canção que nomeia a obra de Kar-Wai soprada pela melodiosa voz de Brian Ferry, era uma delícia para os sentidos, principalmente o visual. Na altura, começava a despertar para a cinefilia a sério e arriscar-me cada vez mais em filmes que não eram falados em inglês. Registei-o e com o tempo, fui adiando e adiando por preguiça, o que é ainda mais gravoso pois até tinha um DVD do filme - que entretanto emprestei e perdi.
Nos últimos anos, no entanto, em vez de adiar, fui evitando. O enlevo romântico que entrevi naquela apresentação, a própria história de um amor que não se cumpre, começava a cortar-me os ossos e ao invés de preguiça, era o medo que me impedia de finalmente concretizar um destino. Vinte anos depois, foi tempo de me confrontar com "In the mod for love"; e fui atropelado. A sua perversão mistura-se com a carga dos pequenos gestos, com o coração aberto perante o espectador em enquadramentos dentro de enquadramentos, prisões de um homem e uma mulher que se enjaulam numa vida. Ele mais destemido, ela na morrinha do que sabe e conhece, no conforto do normal, na falta de coragem de ir para lá. A lentidão da atracção e as noites de uma Hong Kong de clima de humor volátil, nas luzes que são sombras, na proximidade dos beijos que não acontecem, dos abraços que não raras vezes são uma tentativa de salvamento, na perversão maior de um jogo de máscaras onde duas pessoas traídas assumem o papel dos seus conjuges na tentativa de percebê-los e de querer ser maiores, é das coisas mais retorcidas que vi em cinema. Se Tony Leung e Maggie Cheung, enormes, maiores e icónicos nos papéis de Mr. Chow e Mr. Chan - gente vulgar com mundos interiores fantasiosos que sucumbem a essa banalidade dos dias - não fossem tão fotogénicos e tão para lá do que a câmara filma, seria por demais evidente o negrume de cada troca de palavras e o quão insustentável é um diálogo de momentos que não são nem dele, nem dela. Mas a cabeça no ombro, a mão que desliza na mão do outro e o erotismo da castidade como que disfarçam essa perversão em "In the mood for love".
Wong Kar-Wai e o seu cinematógrafo Christopher Doyle constroem, para além de um sublime mundo de formas e cores que quase pulsa nos ouvidos e desliza na nossa pele, e vão directamente ao que transforma o Cinema numa arte sem par: traduzir a desconfiança do funcionamento do mundo. "In the mood for love" é uma história, mas também uma espécie de mentira, pois funciona como a colecção de memórias de dois não amantes que quando regressam ao passado, já encontram um mundo que não existe, pessoas que não são, momentos que sumiram. O próprio tempo não tem balizas, as próprias acções enrolam-se. As sensações e as emoções são o que fica e aquilo a que se agarram, e é disso que se faz o filme. Na história que duas pessoas contam a si próprias na tentativa de acreditar que se repetirá, de alguma maneira. Mas já não volta, como se amar fosse apanhar um comboio que não mais pára na mesma estação. No final, o segredo fica com eles, mas sem casa até ele soprá-lo num buraco que faz as vezes de cofre. Como se aqueles passeios por Hong-Kong, aquelas trocas de olhares em corredores fossem apenas um fumo que não se prende de outra forma. "In the mood for love" é um superior filme, uma experiência emocional fortíssima e durante uma hora e meia, um filtro da dor do desejo contido para quem vê. É preciso alguma vida para de facto sentir o filme e entender o que se esconde, o que se oculta. Mas o atropelo fica, e é isso que marca. Como a paixão que não se sublima ou se cumpre.