“Parasite”: a necrose do dinheiro
A vitalidade do cinema sul-coreano é um dos felizes casos de sucesso do século XXI na Sétima Arte. Parece espantoso que ainda que rodeada por outras filmografias importantes, como a chinesa, a japonesa ou a de Hong-Kong (não estou a fazer uma afirmação política: apenas a considero completamente à parte dos seus conterrâneos continentais), a Coreia do Sul consiga destacar-se todos os anos, com nomes como ParkChan -Wook, Kim Ki-Duk ou Lee Chang-Dong a alargarem os horizontes de cinema do país seja numa vertente mais comercial ou mais artística. Bong Joon-Ho é o mais recente destes senhores a deixar marca, num boom de nomes simultâneos a aparecer de um mesmo país que faz lembrar os Três Amigos mexicanos que dominaram a Academia nesta última década. Se tivessemos de comparar, Bong é claramente um estranho cruzamento entre Alfonso Cuáron e Guillermo del Toro, um homem capaz de pegar em cinema de género e injectá-lo com temas complexos, universais, por vezes arriscados. Até um simples filme de monstros como "The host" tem tempo para abordar as relações familiares na Coreia actual e até mesmo um dos temas que repete naquela que é a sua obra maior até agora, "Parasite": a morte da empatia na sociedade moderna. Há quem refira que o filme é sobre a luta de classes, e tem algo disso, mas é cima de tudo sobre uma série de coisas que se vão desembrulhando no seu disfarce de comédia.
Quanto menos se contar acerca de uma obra com curvas e surpresas retorcidas, melhor; mas pode adiantar-se que trata sobre o encontro algo fortuito entre duas famílias com meios económicos muito diferentes: os Yeon, afluentes, confortáveis na sua mansão no topo da colina; e os Ki, quatro desempregados que tão no fundo que pertencem a uma cave subterrânea. A partir daqui, Bong gere tons e géneros, desde a comédia satírica sem desconforto, mas nunca perdendo o vigor, até uma espantosa e longa sequência que mostra a sua experiência passada em thrillers; quando, a certo ponto e depois de uma viagem pelo sonho, nos atira de regresso à Terra numa das cenas do ano, não há solavancos. O sentido de humor é negro, mas parece ser essa a única forma de suportar as várias verdades que "Parasite" revela, não apenas sobre essa morte da empatia, a capacidade de nos importarmos verdadeiramente com o outro, mas também acerca do quanto a luta pode verificar-se em quem partilha a mesma trincheira. É curioso que partilhe de muitos temas com "Joker", visto que ambos são vencedores de importantes festivais como são Cannes e Veneza.
Mas o que distingue o soberbo filme de Bong Joon-ho é a ausência de maniqueísmo, a exploração complexa dos papéis sociais de ricos e pobres, a capacidade de encontrar nuances para nunca trair os personagens que cria, sem vilanizar em excesso, sem endeusar desnecessariamente. O guião é uma pequena grande jóia de estrutura e de criação de personagens, de como falar de problemas sociais sem ser demasiado escancarado e depois de algumas experiências americanas semi-falhadas, Bong regressou à Coreia do Sul para fazer o seu melhor filme. Os actores são todos incríveis, as reviravoltas fluem, o final, aparte um pequeno pormenor, não trai o travo amargo da realidade sem se armar em Velho do Restelo. "Parasite" é um dos filmes do ano, o candidato imediato a vencer o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, algo raríssimo nos dias em que correm e que tem causado comichão aos poucos que a têm desvalorizado: uma denúncia social inteligente mascarada de filme universal e compreensível a qualquer um que se sente a ver. É um triunfo