“Roma”: Y todas las mamas tambien
É fácil esquecer hoje em dia, mas Alfonso Cuáron começou a carreira longe de efeitos especiais e estardalhaço. Os seus primeiros filmes foram sobre o simples da vida e mesmo depois de se ter estampado no seu primeiro trabalho em Hollywood, regressou à terra natal para fazer "Y tu mama tambien" e voltar mais firmado (curiosamente, o seu amigão Guillermo del Toro tem uma história idêntica). No início do seu percurso, Cuaron filma problemas normais de gente normal, personagens que vivem à nossa frente e se definem em pequenos gestos. Depois da consagração com "Gravity", parece anómalo; mas cinco anos depois, o mexicano está de regresso com um estranho híbrido do intimismo e estudo de personagem em que sempre foi bom com um rigor formal e virtuosismo técnico que o tornam hoje num dos grandes realizadores a trabalhar no cinema actual. "Roma", que Cuáron revela abertamente ter pontos auto-biográficos, é a crónica de um ano de Cleo, a ama/empregada doméstica de uma família de classe média habitando no bairro que dá nome ao filme, na cidade do México.
A história compõe-se de pequenas vinhetas que cronicam a vida de Cleo, de certa forma a sua saída da inocência, o seu estatuto social, as suas aspirações, as suas fraquezas. Cuáron cruza tudo isto com acontecimentos políticos e dramas familiares, sobre uma certa diferença racial evidente pelos papéis que brancos e nativos ocupam no filme; mas nunca cede ao simplismo e mostra nuances complexas na ideia de que mesmo sendo empregada, há uma relação genuína de afecto e preocupação que perpassa todo o filme e que, em última instância, permitem a Cleo sentir algo de semelhante a realização. Se no passado se fez alarde que, com "Ladybird", as mulheres tinham chegado aos Óscares, experimentem ver uma crónica feminina sensível e bem observada, escrita por um homem, mas protagonizada por Cleo e pela sua patroa, mulheres abandonadas por homens, deixadas à sua sorte, sobrevivendo aos destroços da vida como podem por terem gente que depende de si, mas sem nunca ir ao fundo. É um filme belíssimo no que conta e no que mostra: Cuáron, que aqui dirige também a fotografia, coloca a câmara como um panóptico de memória, em planos e movimentos perfeitamente coreografados como uma entidade divina que regista os eventos para mais tarde relembrá-los, contando assim este ano em Roma e mais além.
O realizador revela um enorme virtuosismo num preto e branco lindíssimo, na descrição do absurdo, de personagens que fazem parte do seu imaginário infantil e numa inventividade assombrosa naquilo que se pode colocar num plano apenas - ainda que haja duas set-pieces no filme que, para mim e apesar de não descabidas, são claramente uma demonstração de poder visual. Uma sequência numa loja de móveis, pela maneira como casa duas acções díspares em local e em tom, de maneira perfeita fica na memória; mas mais perto do fim, e dentro de um hospital, há uma sequência de grande economia narrativa, emocionalmente devastadora, que confirma Cuaron como um dos raríssimos casos onde coração e cérebro convivem numa imagem. "Roma" é forte candidato a vencer os Óscares, como vos tratarão de lembrar nas próximas semanas, mas muito mais do que isto, é um triunfo da universalidade do Cinema, a confirmação deste como uma linguagem onde se pode fixar a memória pessoal como em nenhuma outra e acima de tudo, a homenagem que todas as Cleos deste mundo merecem: personagens invisíveis, cujos olhos raramente se levantam do chão que limpam, que parecem desaparecer nas frinchas da sociedade, despercebidas apesar do seu papel de condutoras de emoções e ligação entre humanos, apenas para serem justamente lembradas, e como a memória é importante, num dos grandes filmes de 2018.