“Calvary”: pregar no deserto
John Michael McDonnagh é irmão de Terrence, que tem andado nas bocas dos cinéfilos por causa de "Seven psychopaths" e principalmente o divertidíssimo "In Bruges". O estatuto de ser o mano menos conhecido devia mudar rapidamente, porque este "Calvary" é um filme espantoso, em escrita e realização, e que navega as turvas águas do cinismo sem nunca se render a ele. Conta a história de um padre de uma cidadezinha irlandesa que é ameaçado de morte no confessionário e a quem é dada uma semana para pôr os assuntos em ordem antes que o destino lhe caia em cima. Segue-se o título do filme, um calvário por entre os fiéis desse padre, que pecam sem remorso e se sentem abandonados pela Igreja, por Deus e não reconhecem em nenhum deles a moral para fazê-.ls sentir pecadores. Ao mesmo tempo que lida com uma filha que sobreviveu a uma tentativa de suicídio, o padre tenta viver naquilo que é o seu ideal de decência e virtude, mesmo que ele próprio não tenha tido uma vida adequada, sempre com a ameaça da morte iminente a pairar sobre si.
Não é necessário entender o catolicismo para apreciar devidamente o que o filme propõe, mas ajuda. Mesmo com toda a carga negra do filme, o padre (um rochedo de fortitude e contenção interpretado de forma brilhante por Brendan Gleeson) é uma luz entre as trevas. Não se fala de cristianismo, de catolicismo, mas de fé e da experiência religiosa. Nem sequer é sobre acreditar por acreditar, mas sendo confrontado com a ilógica de "Deus", não fazer da crença apenas o medo da morte, mas sim valores que se seguem e um modo de superação. Como Jesus e como Job, o padre é atacado por todos os lados, entre ateus e amorais, com o fantasma dos últimos conflitos que a Igreja irlandesa tem vivido nos últimos anos (nomeadamente os escândalos de pedofilia) a serem arma de arremesso. "Deus" pode ter ido dar um passeio algures para lá dos limites do universo; Brendan Gleeson, em "Calvary", acha que o seu dever é tomar conta da sua obra, mesmo que o patrão já não se importe sequer. Mesmo que tenha de ser pregado todos os dias