Casablanca - Amigos até ao fim dos tempos
Haverá filme mais citado em toda História do Cinema? Seja com diálogos ou imagens, seja em estilo, seja em espírito? A resposta só pode ser não. Haverá algum outro filme que consiga ser um exemplo mais perfeito de uma obra de apelo popular com uma história de amor impossível pelo meio? Não o acho. Terá conseguido outra obra cristalizar a essência dos seus actores na sua intriga, no seu visual, na sua herança? Olhando para a definição da persona cínica, mas de bom coração, do Humphrey Bogart cinematográfico e da beleza etérea da europeia Ingrid Bergman, terá de se vasculhar bastante em todos os arquivos do mundo. Outros realizadores e filmes podem ser mais admirados e figurar em todos os tops, mas muito poucos serão tão amados quanto Casablanca, de Michael Curtiz, que segundo o grande guru do guionismo Robert McKee possui o mais perfeito argumento jamais escrito. Os gémeos Julius e Philip Epstein deixaram à cultura popular um guião onde quase todas as falas são clássicas: play it, Sam; we will always have Paris; here's looking at you, kid; I think this is the beginning of a beautiful friendship; Round up the usual suspects; I stick my neck out for *nobody*. Toda a gente já viu "Casablanca", apenas não o sabe. Rober Ebert, o mais reverenciado crítico norte-americano, justificou o amor pelo filme com um simples facto: é um filme feito para ser amado. Outros podem ser melhores, mas os dramas de Casablanca são universais. Por isso mesmo, Ebert não se lembrava de alguma vez ter lido uma crítica negativa ao mesmo. Temos de perguntar: como é que o filme se tornou um clássico tão incontornável?
A primeira razão, por muito que Bogart e Bergman pudessem desprezar, é o argumento. Poderá não ser o mais perfeito de sempre, como disse o guru McKee, mas epitomiza o que há de melhor e mais atraente na Hollywood clássica, com o exotismo de uma Casablanca que nunca existiu, uma história de amor maior do que a vida (e que foi classificada, pelo American Film institute, como o romance número 1 do Cinema Americano) e onde até mesmo todos os clichés étnicos e narrativos apenas dão um encanto superlativo. A lenda é de que todos os dias ia sendo reescrito, o que justifica bastante do que se vê, mas já existia uma peça, adaptada por seis guionistas, sendo a maior parte do trabalho final resultado do esforço dos irmãos Epstein, que usaram um modelo romântico de outros filmes da altura. Resulta assim como um conto de fadas Hollywoodesco, com um príncipe muito cínico e uma princesa inocente e perdida. No entanto, a apimentar tudo, existe um subtexto político, muito recorrente por esta altura (o filme foi estreou em 1942, um ano após Pearl Harbour, e a máquina de propaganda de Hollywood cada vez mais metia nazis, fascistas e asiáticos no papel de vilões), representado pela famosa cena onde Victor Laszlo invectiva um punhado de clientes do bar de Rick Blaine, alguns colaboracionistas e parasitas eventuais, que redescobrem o patriotismo cantando uma “Marselhesa” que se sobrepõem a canções de nazis. As análises políticas são praticamente nulas, mas o seu contexto de 2ª Guerra Mundial adensa-lhe o mito e o mistério, dando uma carga emocional maior ao romance principal e sublinhando outros dois temas de grande enfoque no filme: o sacrifício e a honra.
A segunda razão prende-se com os actores e as personagens. Já se sabe que os actores principais refinaram em Rick Blaine e Ilsa Lazlo as suas personas cinematográficas definitivas. Mas outros actores, como George Raft e Hedy Lamarr foram primeiras escolhas. No entanto, se a magia do filme se prende precisamente com o jogo entre Bogie e a belíssima actriz sueca, o que lhe dá substância são os secundários. Paul Henreid, embora fosse considerado pelos colegas uma prima-dona, dá uma estranha nobreza a Lazlo, o herói do filme na acepção mais moral do termo, mas também chatinho e santo, o que contrapõe com todo o folclore de gente desprezível e amoral que existe em Casablanca. Rondam o torpe Ugarte, que só confia em Rick Blaine precisamente porque o despreza; o pragmático Ferrari, rotundo e de fato branco destacado, um cosmopolita no meio do deserto, respeitando Blaine e o que está em jogo, mas sempre com os negócios como primeiro interesse; o orgulho alemão do coronel Strasser, interpretado por um actor que na verdade tinha sido perseguido pelos Nazis; e o capitão Renault, talvez a mais interessante e colorida figura de todo o filme, sempre com um dito espirituoso, hábil a navegar as águas turbulentas da geopolítica local, amigo dos anjos e dos diabos, sempre sem se comprometer até ao momento crucial. Subtil nas suas afiliações políticas, é quem melhor define os arquétipos principais de Casablanca: Rick é o homem que todos queremos, aquele com quem ele dormiria se fosse mulher; Ilsa, a mulher tão bela que o próprio acto de dizer que é o ser mais resplandecente que jamais pôs os pés naquele ermo e selvagem local é em si vulgarizar o termo. Renault é prático, mas também capaz de fazer a coisa certa, no momento certo. Em suma, o amigo perfeito para a escolha que Blaine faz no final do filme
A terceira e última razão são as suas intemporalidade e universalidade. “Casablanca” não é nenhuma obra de denúncia social ou política. No entanto, ressoa fundo em temas constantes da Humanidade e vive nos espectadores porque reflecte anseios comuns: amores que não se podem cumprir, a dúvida do heroísmo, a atracção por cenários exóticos, o encanto de personagens que representam o Homem nas suas valências, o encanto das linhas bem definidas do rosto de um actor. A história do filme pode ser mais corny do que o estado do Iowa, como bem colocou um dos manos Epstein, mas resulta porque no fundo, por muito intelectuais que queiramos parecer ou sofisticados que ansiemos, ainda que desejemos ser totalmente “Citizen Kane” ou “Vertigo”, todos somos “Casablanca”. Todos amámos e abdicámos, todos vivemos ou queremos viver uma dessas histórias intensas de paixão que não se resolvem, que queimam e consomem, que começam em Paris e pausando em movimento de cadência metrónoma, explodem um dia do outro lado mundo, tão sarça ardente como no dia em que começaram.
É por isso uma obra que se ama e se adora, porque no meio de todas as voltas, de todas as rotações do planeta em torno do seu eixo, Ela teria de acabar ali. De todos os bares e estabelecimentos do mundo, era ali precisamente que teria de entrar. Rick e Ilsa terão sempre Paris, mas aqueles que se deixam amar pelo Cinema, que se entregam à paixão do ecrã, que vivem num romance perpétuo com o fotograma e sente no coração um pequenino incêndio quando se sentam na vida, esses guardarão eternamente o amor por Casablanca.