Claire Denis - O corpo de delito
Claire Denis cresceu pelo mundo, mas principialmente na África colonial francesa. Talvez tenha sido isso que influenciou não só a visão política que várias vezes expressa no seu cinema – abordando, amiúde, o tema directa ou indirectamente – mas também as suas obsessões visuais e temáticas: se há cineastas que se esforçam por deslindar o que existe na alma humana, Denis está várias vezes obcecada com os efeitos do corpo e a sua inserção no meio físico. É indissociável a forma como enquadra a paisagem e os seus actores como se a harmonia entre um e outro fosse fundamental para transmitir a verdadeira mensagem dos seus filmes. Além de cineasta, Denis parece às vezes uma escultora das formas no ecrã, fascinada com a inserção do corpo no meio e de como este consegue representar, melhor do que as palavras, as dificuldades de existir que os seus personagens têm, a prisão que sentem no mundo em que existem, a necessidade que têm de fugir de uma vida desapontante ou opressora.
A realizadora sempre fez questão de dizer, em várias entrevistas, que não há qualquer coerência temática na sua carreira: atraem-na as formas, as texturas, os sons e a palpabilidade na expressão das suas ideias; e de facto, pelo menos se tivermos em conta géneros cinematográficos, Claire Denis movimenta-se em vários, desde o drama romântico de “Friday Night” até ao flirt com o terror de “Trouble every day” ou a sci-fi espacial de “High Life”. Começou colaborando com Wim Wenders, Jim Jarmusch e Jacques Rivette, mas a força do feminismo que tantas vezes coloca na sua obra mostra-se quando alguém sugere que de alguma forma foi beneficiada por isso ao longo da carreira – como descobriu uma repórter do Guardian em 2023, quando fez a sugestão. “Se fosse um homem, ninguém estaria com esses comentáros.” Denis mostra, em todas as ocasiões em que é entrevistada, uma sensibilidade extrema a lugares, espaços. Em “Trespassing Bergman”, documentário de 2007 em que luminárias do Cinema são convidadas a visitar a até então inacessível casa do grande realizador sueco, ela exige a certa altura sair no imediato e que as filmagens cessem. A razão é um sentimento opressor de estar a invadir um espaço privado, sagrado, algo que não consegue abandonar no próprio corpo; e essa relação com os espaços e o seu cruzamento com as emoções humanas que transforma o seu cinema. O exotismo dos mesmos é sempre uma extensão da viagem interior que fazem os personagens.
Na sua obra mais aclamada, “Beau travail”, tal é demasiado óbvio. Fala-se da noção de estrangeiros, mas um tipo de estrangeirismo colonial, soldados da Legião Francesa vivendo num país africano, treinando, relacionando-se, tentando integrar-se com os locais. Galoup, oficial que treina estes soldados, vive um afecto estranho pelo seu superior hierárquico e quando um novo recruta chega, o calor do Djibouti, a largueza das terras e o carácter hipnótico das cores africanas forçam-no a confrontar aspectos de si mesmo que reprime há muito. Claire Denis viveu os seus primeiros anos nos Camarões e decerto foi influenciada pela sua própria experiência nesse encantamento. O filme é quase um objecto táctil, na maneira como Galoup, interpretado sublimemente por Denis Lavant, se funde com a aridez dos desertos e a frescura do oceano, levando a extremos que não se condensam na sua muralha. A forma como África se ri das regras da instituição militar. E um dos melhores finais da História do Cinema, onde o movimento assume o protagonismo. Com Denis, mais do que diálogos, é a conversa entre o mundo e os corpos que melhor explica a sua sensibilidade, a pureza do que procura.