Isabelle Huppert - Nunca é nada com ela
É difícil imaginarmos Isabelle Huppert numa comédia romântica ou até revelando-se, depois de dois terços de filmes parecendo fria e gelada, como alguém de coração de ouro disposta a ajudar numa história de xarope. Pensar em Isabelle Huppert é imaginar personagens que habitam nos limites do moralmente aceitável, com um centro ético que dobra como um fio de esparguete e no máximo, alguém cuja frieza a impede de lidar com os sentimentos dos outros ou sequer a gerar empatia. Bem vindos à carreira da actriz que teve mais filmes em competição do festival de Cannes, de tal forma que rapidamente ganhou a alcunha de rainha de Cannes; e na verdade, quando pensamos nas grandes damas do cinema francês actual, ainda que estrondosas intérpretes como Juliette Binoche, Marion Cotillard ou Catherine Deneuve, o nome da Huppert é o que primeiro nos vem à cabeça.
Mas porquê? Afinal, se esta mulher é o epítome de um tipo específico de personagem, de emoção, porque é tantos críticos e realizadores a apelidam tantas vezes como a melhor e mais cativante presença num ecrã? Ora, em primeiro lugar, Huppert é o raríssimo exemplar capaz de representar com a mesma categoria alguém com uma precisão intelectual e uma capacidade quase infindável de escavar sofrimento e dor. A sua tristeza nunca é somente histérica ou descontrolada: ela pode parecer perfeitamente em controlo, mas a sua cara denuncia um turbilhão tremendo, um vendaval interior com a astúcia não consegue controlar, por imensa que seja; e no entanto, dentro da mesma aparente emoção, ela atravessa a selva que vai do desaofo carnal até às gelidas tundras antárcticas da emoção.
Nunca uma actriz conseguiu com tanta precisão e com tanta flexibilidade transmitir o desespero e o absurdo do ser humano no que sente e no que procura; e isto ao longo de toda a sua carreira, desde “Violette Noziére”, passando por “La ceremonie” ou no mais recente “Elle”, o filme que lhe valeu a sua primeira e única nomeação ao Oscar – onde viria a ser ridiculamente derrotada por Emma Stone em “La la land”. A sua colaboração com Paul Verhoeven, num thriller psicológico onde questionamos muitas vezes a linha muito difusa entre consentimento e vingança e onde Huppert interpreta talvez a vítima de violação mais atípica que possamos imaginar, fora Lisbeth Salander, mostra porque é que o medo é coisa que não lhe assiste: a sua habilidade e arrojo em abordar temas difíceis vistos através de perspectivas ainda mais complicadas deve ter encantado Paul Verhoeven, alguém como, como outros antes dele – Haneke ou Chabrol – adora esticar os limites do que achamos normal ou aceitável no comportamento humano, nomeadamente o feminino.
Quando, em 2002, François Ozon realizou o musical “8 femmes”, invocando algumas das grandes damas francesas da representação, como a já referida Deneuve, Fanny Ardant ou Emmanuelle Béart, como se quisesse reunir todos os matizes do que uma mulher pode ser num ecrã. Deneuve é uma matriarca de altiva beleza; Emanuelle Béart com uma sensualidade sempre presente; Ardant extrovertida, bonnne vivante; e Huppert? Uma mulher reprimida, intensa, gelada, escondendo-se atrás dos óculos… e tendo um romance com o seu filho adolescente. Quando o filme envereda pelo musical, Huppert senta-se ao piano – um ano depois de ser aclamada pelo seu papel em “The pianiste” e canta “Mensage personnel” de Françoise Hardy, a gelidez derrete e o coração anseia pelo amor, pela presença, mesmo que incestuosa. Ozon condensa as nossas ideias e a carreira de Huppert, mas esquece-se que, como todas as imagens, há algo mais por detrás. E acho essa é a derradeira herança de Huppert: a curiosidade gera em nós, de descobrir se o icebergue é só a ponta.