“Seven” - Os sete círculos do thriller moderno
Posso dizer, sem correr risco algum de passar por mentiroso, que “Seven”, obra-prima de David Fincher, é o filme mais importante da minha vida. Aliás, sem ele, não estaria aqui a escrever neste site, e muito menos teria pilhas de revistas e livros sobre a 7ª Arte. Foi nos idos de 1996, numa sessão nocturna da RTP 1, que descobri uma obra tétrica e perturbadora, mas acima de tudo um mosaico visual de negrume, desespero e ainda assim, de uma beleza fascinante que torna o questionar quase reflexo. Desde esse momento, o Cinema tornou-se uma paixão, uma obsessão, um motivo para deteriorar ainda mais uma vista cansada por páginas de livros. Deu-me também a certeza de que aquele realizador era um arauto de qualidade da imagem em movimento. É com regozijo que, vinte anos depois, pois é esse o aniversário que se comemora neste 2015, aquele adolescente leigo estava certo.
“Seven” nasceu do desespero de dois homens: Andrew Kevin Walker, o argumentista, trabalhava há alguns anos numa loja de discos tendo já vendido alguns guiões medíocres para medíocres filmes. Um dia, lembrou-se de juntar um serial-killer que mata de acordo com os sete pecados mortais com a sua própria visão daquilo que mais tarde chamaria “a carta de amor à vida urbana e a Nova Iorque em particular. Este guião acabou por encontrar o realizador, o supracitado Fincher, que vinha de uma experiência no filme “Alien 3”, da qual diria que seria preferível ter cancro no colon a realizar uma outra curta-metragem. Depois de anos a brilhar na área do videoclip e da publicidade, a carreira no cinema parecia ter acabado antes de começar, mas tudo isso mudaria com “Seven”. O filme é transgressor e não é só pelo horror gráfico. Todas as escolhas que parecem ser feitas ao contrário do que era esperado: o filme viola regras básicas do thriller, como por exemplo ao revelar-nos o assassino a pouco mais de meio do filme; o negrume e a morbidez são filmados como se fosse um anúncio de perfumes Chanel (cortesia da excelente direcção de fotografia de Darius Khondji); e aquele final que fez muita gente jurar a pés juntos que viram uma cabeça dentro de uma caixa, mesmo que esta não aparecesse: Fincher conta como numa festa depois da estreia, alguém quase o agrediu por tentar asseverar com assertividade que essa mesma cabecinha surgia embebida em sangue. No tribunal do cinema, o realizador tem menos poder do que o espectador. Esse final tornou-se a imagem demarca do filma, e é quase ridículo pensar que o final pretendido pelo estúdio era um banal “bom acelera pela cidade para salvar a esposa que toma banho em casa e está prestes a ser morta pelo assassino”. O produtor Arnold Koppelson disse a Fincher que só utilizariam o desfecho da primeira versão do guião por cima do cadáver dele. O realizador contra-argumentou: de que adiantava fazer um filme igual a tantos outros? Koppelson não se deixou convencer. Brad Pitt assinou contrato e quando soube que a primeira versão estava para ser arquivada, bateu o pé e afirmou veementemente que só faria o final original, Morgan Freeman veio a seguir e disse o mesmo. O próprio Michael de Luca, director da distribuidora New Line (e o homem por detrás da feitura de filmes como “Magnolia”, os dois “Hora de Ponta” e da trilogia épica “O senhor dos anéis” e que levou a New Line de estúdio modesto a grande força do cinema americano) dizia a Fincher que a New Line só se interessava pela originalidade, não pela boçalidade. Portanto, reuniram-se todos numa última tentativa de convencer Koppelson: Fincher contou-lhe que daí a uns anos, quando todos eles tivessem morrido, alguém estaria a discutir numa festa um filme que vira na noite anterior na televisão. Não se lembrava dos actores, nem do realizador, mas sabia que acabava com uma cabeça numa caixa. “The head in a box movie”, saiu-lhe. Koppelson gostou da frase, sorriu e deu a autorização para que a máquina começasse a funcionar.
Estender-me aqui tematicamente sobre o filme dava matéria para vários flashback: o facto de ter vários aspectos de acordo com o Diabo; o nome de John Doe, usado para designar mortos desconhecidos e que diz basicamente ao espectador que o Mal não tem nome, nem cara, e pode ser qualquer um; o lado de conto sobre moralidade e as constantes referências a obras clássicas do género, desde a “Divina Comédia” a “Paraíso Perdido”; a desesperança das urbes modernas, no filme anónimas, mas claramente inspiradas nas metrópoles da Costa Oeste, onde o sol nunca brilha, o mal está sempre presente e chove sem pausa; o grau de ameaça que parece existir em cada fotograma e que apesar de referências que os críticos sempre atribuem, Fincher revela, num comentário áudio do DVD, ser homenagem a “Klute”, de Alan J. Pakula; o anacronismo dos cenários interiores, que o aproximam da estética do neo-noir, tornando-se um verdadeiro hino ao negro; a nossa cumplicidade com o criminoso: quando sabemos que há sete crimes no filme e John Doe se entrega depois do quinto, sentimos a falta do restantes dois e não nos importamos que venha aí morte e desgraça, pois queremos o quinhão de adrenalina que nos é devido. O mundo de “Seven” é um caído em desgraça, onde o pecado é tão natural quanto respirar. Ninguém peca de facto, porque a consciência desapareceu e o remorso não existe. Quando, no início, Willim Somerset, interpretado por Morgan Freeman, com o facto de uma criança poder ter visto um crime de que só vemos o resultado final, outros dois polícias encolhem os ombros: de que interessa isso?
Vinte anos depois, o filme continua como marco seminal não só do género, mas também de uma corrente de filmes realizados por gente vinda dos videoclips, como Spike Jonze, Mark Romanek ou Michel Gondry, por exemplo, cujo cuidado visual não exclui o alimento para o intelecto. A partir de “Seven”, David Fincher construiu uma carreira que o tornaria como um dos mestres, conjuntamente com Paul Thomas Anderson, do cinema americano contemporâneo, cruzando um sentido visual puramente moderno com um sentido clássico de contar uma história. Em todas as suas obras das mais transgressoras às mais lineares, respiram um espírito narrativo coerente e enérgico, que não se desfaz, que concentra o Cinema naquilo que interessa: a arte de contar uma história, de envolver o espectador usando todos os recursos ao seu dispor, e de, num toque fincheriano, desfazer essas expectativas com um só golpe. Isto é “Seven”, no mais básico que se pode descrever: a abordagem de uma das estruturas mais recorrentes do cinema, mas feita partir do mais inesperado dos ângulos; e é isso que o torna num clássico que andará sempre por aí.