“The fall” - Tarsem e o manto de mil cores

O indiano Tarsem Singh não será dos realizadores mais essenciais dos últimos anos, mas existem poucos visualistas no cinema actual capazes da sua exuberância e até exagero. Tendo ficado famoso pela realização do videoclip “Losing my religion”, para os REM, prosseguiu uma carreira na publicidade que culminaria no seu primeiro filme, “The cell”, o excessivo e péssimo filme onde apesar do mau gosto da história se nota já o fascínio de Tarsem de, acima de tudo, agarrar nos olhos do espectador e convidá-lo a deixar tudo o resto fora do mundo de ficção onde o realizador nos mergulha. O insucesso da obra levou-o a ficar seis anos fora do sistema de estúdios. Passou esse temo a recolher dinheiro para filmar aquela que continua a sua obra-prima, e o filme que melhor casa a sua estética com tudo o mais que deve envolver um filme.

Falo de “The Fall”, o pessoalíssimo projecto que Tarsem pagou do seu próprio bolso e que foi filmado durante quatro anos, em vinte países. Talvez escaldado da experiência anterior, resolveu desta vez ter total controlo criativo sobre o seu processo, para filmar uma espécie de fábula que cruza dor, o cinema mudo, a imaginação das crianças e também uma série de elementos místicos A produzir, Tarsem apelou a dois amigos famosos em Hollywood, SPike JOnze e David Fincher (que viria a cobrar o favor a Tarsem, quando lhe pediu para filmar as imagens da saga indiana de Brad Pitt em “The curious case of Benjamin  Button). A história é protagonizada por Roy (interpretado por um Lee Pace que ainda não tive o reconhecimento de “Pushing daisies”), um duplo de cinema com o coração despedaçado que ficou tetraplégico num incidente de rodagem, que conta uma história a uma criança, Alexandria, de forma a tentar convencê-la a roubar morfina para lhe trazer. Esse conto reflecte o mundo fracturado e dilacerado de Roy, algo que se torna evidente com o aproximar do seu fim, e é o pretexto para aquilo que torna o filme num objecto quase único e a julgar pelo que vemos, irrepetível: o desfilar de paisagens, visões, mundos por entre os quais o personagem desse conto (que incluem Charles Darwin) avançam, numa cruzada de vingança contra o governador Odious. A subtileza não é o forte de Roy, mas também não o é de Tarsem, e ainda bem: o aspecto visual de “The fall” é fantástico, de arregalar os olhos. Cada imagem, cada movimento parece ter sido estudado, e é expressivo por si só. Pintando quadros de imagens em movimento, o indiano diz que não usou qualquer efeito digital, e a acreditar, que proeza. "The fall" tem o tipo de imagens que nos fazem esquecer de respirar por segundos, como se o prazer dos nossos olhos provocasse um qualquer problema nos pulmões. Alguma imagética é imitação de outras obras (há citações visuais quase directas de “Baraka”, de Ron Fricke, por exemplo). Mas tal não lhe retira o poder.

Esse é, aliás, o ponto forte do filme. É um murro estético incrível, um objecto rarísimo e que devemos apreciar, pois nos tempos que correm, nenhum estúdio em Hollywood iria financiar um filme deste género, sem actores conhecidos no elenco. É uma das grandes belezas do filme: a cada momento, estamos a apreciar algo de perfeitamente irrepetível. Enquanto assistia a "The fall", sentia-me especial por isso mesmo. Tanto mais que esta obra teve pouca divulgação, e assim, mais especial me sinto por poder desfrutar do poder visual deste filme. Claro que "The fall" nunca consegue caminhar equilibradamente entre olhos e cabeça. O argumento deste filme, escrito por um Dan Gilroy que, anos mais tarde, realizaria o extraordinário “Nightcrawler”, é desprovido de arcos narrativos de personagens e estrutura, e o balanço entre a fábula que se conta e a vida real está feito de forma atabalhoada. é um objecto bizarro, numa história construída a três, entre Alexandria, Roy e nós próprios. Mesmo os problemas de comunicação entre a menina romana e o duplo norte-americano se reflectem nas nuances da história (por exemplo, entendimento diferente que ambos têm da palavra "indian"). Apesar de tudo, o filme está cheio de pequenos pormenores fantásticos tiradas engenhosas, que nunca se perdem num todo incoerente. Não sei se isto se deve à habilidade de Tarsem ou à força esmagadora das imagens que cria, mas é um facto que este é dos filmes mais extraordinários feitos no século XXI. Não necessariamente dos melhores, mas aquelas obras que saem fora do normal e que nos sabem dar cinema em grande escala e poderoso sem se armar ao pingarelho. Excessivo, magnificamente belo, raro. É a imaginação de um artista ao serviço do nosso prazer.

Permitam-me destacar a abertura de "The fall", uma pérola que, sozinha, é superior em arte a muitas longas-metragens. Estabelece desde logo o catalisador da trama do filme. O que fascina não é o desenrolar desse mesmo catalisador, mas sim a elegância clássica do slow-motion, a captação de micro-expressões escondidas e um renovar de uma das peças de músicas mais usadas em cinema, o movimento Alegretto da 7º sinfonia de Beethoven. Cada cut é uma dissolução entre o real e o irreal, e cada fotograma uma pintura à espera de ser colocada numa parede. O uso do preto e branco é não só adequado à época em que o filme se desenrola, e o próprio meio, mas é uma opção estilística que se deve talvez à própria noção de fantasia e diferença que o contraste com um mundo actual cheio de cor provoca. O preto e branco é a ruptura, e afinal, a reflexão da mente do protagonista.

É um magnífico genérico, e quase uma curta-metragem à parte do resto da fita. Um arremedo de sonho, onde as coisas parecem animais e os animais coisas. Um terreno de fábula, portanto. Mas também de terror, de um certo de surrealismo, onde pedaços do quotidiano tomam o aspecto de criaturas grotescas. Como Tarsem bem definiu, é um caos sem energia.





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