Alan Rickman - Parecia que era bruxo

É um lugar comum entre jornalistas e críticos escrever que determinado actor é bom até lendo a lista telefónica. Parece um exagero, mas o aveludado tom de hipnose das cordas de vocais de Alan Rickman fariam todas as moradas e apelidos soar como se um anjo as declamasse à porta do céu. “Ar Dental dentistas” e “Rita Namorado” transformar-se-iam em poesia camoniana se Rickman as pronunciasse, com stacatto, com pose. Dois especialistas académicos, um linguista e um engenheiro de som, concluíram num estudo que a voz masculina perfeita era uma combinação dos timbres de Rickman e outro britânico com velcro na voz, Jeremy Irons. Não se trata da modulação, nem dos graves, nem dos tempos: o que a voz de Rickman solta é classe. 

Classe era mesmo a palavra que definia o actor. Treinado no mundo do teatro, e considerando-se sempre um intérprete de palcos, estreou-se bastante tarde no cinema, aos quarenta dois anos. O convite partiu de John McTiernan, que realizava um tenso filme de acção que decorria quase inteiramente no espaço fechado de um edifício. Em “Die Hard”, Rickman seria Hans Gruber, o vilão que marcaria a sua carreira e também a de dezenas de actores ingleses que entraram em Hollywood pelo sucesso deste tipo de papel. Rickman não era o primeiro britânico vilanesco numa super-produção norte americana.  No entanto, o seu Gruber era a personificação daquela que é o traço de personalidade que Rickman melhor desempenha: o desprezo aborrecido elegante. Gruber passa todo o filme numa exasperação contida não com as tropelias de John McClane, mas sim de todo um corpo de capangas e de americanos de cabeças em chamas que lhe perturbam um plano bem delineado e maquinal.



O actor passearia essa característica noutras obras como “Galaxy Quest”, “Dogma” ou interpretando Marv, o robô em perpétua depressão de “The hitchiker’s guyide to the galaxy”. Mesmo o seu personagem mais conhecido, o professor Severus Snape da saga Harry Potter, tem na voz dois olhos altivos, a passada de quem se está simplesmente a dar ao trabalho de existir numa escola de feiticeiros. Essa paciência com o mundo é uma marca de todos os seus papéis, e raramente a exasperação tomava conta das suas interpretações. As excepções, como “Robin Hood: prince of thieves” são de assumido over-acting. O seu xerife de Nottingham é o tipo de personagem em que não nos surpreenderíamos se Rickman parasse a meio de uma cena esperando que o público lhe atirasse rosas vermelhas ou assobios. Mas na realidade, segundo aqueles que o conheceram, Rickman era o contrário, um simpático e atencioso cavalheiro. 

Por isso mesmo, não foi apenas o mau da fita. Em filmes como “Truly madly deeply” ou “Snow cake” (um dos filmes que mais gostou de fazer), há personagens falhados, quebrados, mas com uma graça incrível em frente à tragédia. Homens estóicos, mas partidos, que suportam existências normais e deprimentes, mas sentem e pulsam e amam. Colin Firth é lembrado como o perfeito personagem Austeniano, mas em “Sense and sensibility”, de Ang Lee, Rickman interpreta o coronel Brandon, discreto, romântico e num desespero de amor tão tipicamente britânico que discute a coroa Austeniana taco a taco com o seu colega actor. A sua paixão tímida, mas avassaladora, pela personagem de Kate Winslet sobrevive à nossa imagem de Rickman. Quando observa a Marianne de WInslet cantar ao piano “Weep no more sad fountains”, está criado um dos mais poderosos românticos do filme, e apenas com um olhar, como se tivesse sido apanhado de surpresa pela paixão e embora não saiba o que fazer com ela, não tem outro remédio senão a submissão.  

Na verdade, o legado de Rickman é, afinal, outra voz: a interior.


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