Brian de Palma - O buraco da fechadura
Estranho destino, o de Brian de Palma. O cineasta surgiu na década de 70, mencionado tantas vezes com os seus colegas de geração Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Steven Spielberg e Martin Scorsese. Homens que, num período importante de transição no cinema americano, quando o sistema de estúdios abriu as portas a novos nomes que despontavam nas franjas mais independentes da Sétima Arte, se tornaram nomes importantes e reverenciados. De Palma foi ganhando detractores e inimigos ao longo da carreira.
Desde acusações mais artísticas, como sendo mero imitador de Hitchcock, ou a de ser misoginista e cruel, pela maneira como retrata a violência, particularmente contra mulheres, no seu cinema, consegue-se perceber como é que um dos grandes realizadores americanos do pós-década de 70 seja considerado uma espécie de pária no seu próprio país, tendo ganho uma reputação sólida na Europa. O seu fascínio com temas como o voyeurismo e a sexualidade ligada à violência são recorrentes noutros cineastas do velho Continente, como Antonioni ou Godard (duas influências que de Palma admite) e a sua intransigência em relação à maneira como define e conduz o seu cinema é típica da ideia de auteur que tanto sucesso faz na Europa. É um facto que muitos dos seus filmes giram em torno de uma relação fetichista com o olhar: “Obsession”, “Blow out”, “Sisters” e até os mais tardios “Femme Fatale” e “Redacted” giram em torno de observação e vigilância, de um controlo que de Palma tem sobre o que os personagens, e por conseguinte o espectador, vêem. Por isso se define acima de tudo como alguém que explora o potencial da imagem como narrativa. Numa entrevista à revista Empire, em 2008, comenta a certa altura: “Não estou interessado em muita conversa entre personagens. é aborrecido. O cinema depende de imagens para gerar suspense, tensão, terror ou ansiedade, e isso para mim é a pureza do cinema. É aquilo que procuro.”
É curioso que nessa mesma entrevista, o realizador tenha destacado estas emoções, pois são aquelas que estão mais presentes nos seus filmes, mesmo nos mais comerciais. A famosa sequência do roubo da CIA em “Mission Impossible” é show off de Palma, controlando uma situação de poder nervoso, de literal suspense. Poucas coisas representam melhor esse gosto pela tensão do que um dos seus recursos estilísticos mais utilizados: o long take. Por vezes exibicionista, mas sempre um instrumento de deleite e estabelecimento do coração apertado. Na verdade, foi aquilo que me levou a admirar o cineasta nos meus primeiros anos de cinefilia. Admito que tenho uma atracção por esta ferramenta narrativa. Até mesmo um dos seus piores filmes, “The Bonfire of Vanities”, inclui um espantoso logo a abrir, e “Snake eyes”, outra obra menor, oferece-nos outros de quase quinze minutos ao qual o restante filme não sobrevive: não só é um espantoso exercício de mise-en-scéne, como se torna essencial para o jogo de perspectivas e versões de uma mesma história, quase à “Rashomon”, que forma a estrutura dessa obra. Gratuito? Talvez, mas também fascinante. Normalmente enquadrados de maneira muito apertada, criam no espectador a ideia de estar em cena, aumentando assim o nervoso miudinho e a expectativa de que algo vai acontecer.
Por isso os filmes de Brian de Palma se situam quase sempre numa esfera operática e barroca, de sentimentos exacerbados e momentos extremos. Para de Palma, está tudo nos olhos e no olhar, em confiarmos no que vemos, em questionarmos até. Muitas das suas particularidades como realizador (o uso de ecrã dividido; a presença de doppelgangers) referem-se precisamente à percepção. Apenas nos filmes que não escreveu estes tiques e obsessões não são tão evidentes, e curiosamente são estes aqueles que se tornaram mais bem sucedidos na bilheteira ou até com a crítica.
Parece ser esse o paradoxo de Brian de Palma: os filmes que o tornaram num daqueles nomes que por si só já levam alguém a ver um filme são aqueles que mais lhe fogem do controlo. Não quer dizer com isto que sejam maus filmes: “The untouchables” é um filme de entretenimento excelente, e com uma realização tão boa que até mesmo um de Palma serviçal é melhor que muita coisa. Nunca foi nomeado para os Óscares, mas de Palma nunca procurou uma popularidade generalizada. A sua influência sente-se em realizadores como Quentin Tarantino e Gaspar Noé, principalmente pela maneira como plasmam a violência num ecrã. A diferença está na elegância e na motivação da representação dessa mesma violência nos filmes do veterano realizador: a psicopatia humana faz parte da sua visão cruel e de Palma é claramente um dos grandes decanos do cinismo em Hollywood. É esse cinismo que impregna os seus filmes, que perseguem seres imperfeitos, homens que raramente encontram redenção e histórias que revelam o pior das pessoas e a fachada que esconde as depravações mais profundas do Homem. É nesse cinismo que se encontra precisamente com Hitchcock e embora parte da sua obra seja o estudo de filmes alheiros, há algo de vibrante e original na maneira como compõe os seus enquadramentos, por vezes de forma pouco ortodoxa, e como procura expressar nas imagens as indecisões da percepção. Como disse uma vez, a câmara mente 24 vezes a cada segundo, e de Palma nunca disse que era Gepeto.