“The night of the hunter” - As mãos de Deus

Continua a ser uma fascinante obra de estreia… e fim de carreira. Charles Laughton realizou “The night of the hunter” depois de anos a tornar-se num actor de referência, principalmente em papéis secundários com necessidade de verve e estilo britânico; e embora o mito perdure de que Laughton nunca mais enveredou pela realização devido à má recepção que a obra teve, a verdade é que a difícil produção, envolvendo dois alcoólicos semi-funcionais, problemas de orçamento e a obrigação de lidar com um elenco variado de actores consagrados e crianças, convenceu-o de que se calhar, só se calhar, ser actor era uma tarefa mais fácil.


O que Laughton nos deixa, no entanto, é uma fábula de terror gótico que se desenrola no Sul dos EUA, onde a infâmia e a religião se cruzam com facilidade, a promiscuidade da manipulação e a divindade são tema principal… mas também o potencial de redenção e amor desinteressado colando os cacos de um mundo dominado pela pobreza da Grande Depressão. A história é protagonizada por Harry Powell, um falso pregador que Robert Mitchum eleva a ícone cinematográfico incontornável, matando viúvas pelo vale do rio Ohio, ficando-lhes com o dinheiro e as posses. De cadáver em cadáver, como quem salta nenúfares, chega a casa de Willa Harper, que desconfia que o marido assaltante escondeu uma grande quantia de dinheiro em casa antes de ser morto pela Polícia. Os dois filhos do casal tornam-se vítimas neste esquema e são obrigados a fugir de Powell pelo rio fora. 


Antes de tudo mais, a fotografia de Stanley Cortez é inolvidável. A maneira como transforma todos os exteriores e interiores num delírio permanente, de como verdadeiramente comunica uma narrativa praticamente sem necessitar de diálogos, como se fosse um teatro de sombras ou a imaginação infantil a tomar conta de um ponto de vista é inolvidável e Cortez exibe grande BDPE energy: Big Director of Photography energy. A intenção obviamente expressionista transforma “The night of the hunter” num objecto anacrónico: contrastes muito elevados entre sombra e luz a marcar o tom e humor de um filme que parece ter uma vida própria, um ser vivo que vemos desfiar e passear. A certa altura, a realidade é mesmo um pormenor, principalmente porque a malevolência de Harry Powell, um monstro irredimível, venal, guloso de riqueza de que Robert Mitchum não tem medo, parece-nos demasiado horrível para poder existir; e essa foi uma das conclusões a que chegaram várias instituições morais e dioceses dos EUA, que boicotaram ou proibiram o filme em vários pontos do país. Powell, usando a religião como as linhas de uma marioneta, perverte a ideia de bondade divina.

Esta, no entanto, é recuperada por uma idosa interpretada por Lillian Gish, que estabelece o seu pequeno Eden de crianças perdidas, deixando vir a si as criancinhas, numa rectitude moral inquebrável. É o confronto entre estes dois extremos, um pouco como os contos infantis, que amplifica o filme e o ancora mesmo nas suas sequências mais delirantes. “The night of the hunter” é hoje considerado uma obra-prima, aparecendo regularmente nas listas de melhores filmes de sempre de publicações como a “Sight and Sound” e os “Cahiers du Cinema” e citado em filmes tão díspares como “Do the right thing” ou “The big lebowski”. Entre os seus fãs, contam-se Scorsese, del Toro, Fassbinder ou Altman, provando como o esforço único e difícil de um homem com um sonho cinéfilo pode transformas as décadas vindouras, leaning on the everlasting arms of a Lord named Charles Laughton. 

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